terça-feira, 27 de junho de 2017

Ah! Este Admirável Mundo!


Admirável Mundo Novo: análise do romance de Aldous Huxley
Por Cris Cases[1]


Publicada em 1932, a narrativa ficcional de Aldous Huxley alcança a idade de 85 anos com a incrível jovialidade de um artefato contemporâneo - embora o clássico pertença à Escola Modernista inglesa.
O contexto histórico no qual foi composto o Admirável Mundo de Huxley fornece a matéria-prima para a obra: a crise financeira e a escassez que se abateram sobre a Europa no período que se estendera após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), o sentimento de desolação de lutos revisitados quando da reconstrução das cidades arruinadas nos bombardeios, no revirar da terra para o plantio – outrora pisoteado pelas tropas de batalha; e, sobretudo, na resiliência. A resiliência de quem não tinha outra opção para sobreviver a não ser juntar-se às massas de trabalhadores nas linhas de montagem das indústrias.
A resiliência humana é o que se infere desse texto literário. O termo, cunhado pela Engenharia - correspondente à Física dos Materiais - faz referência à magnitude que quantifica a energia absorvida por um material na hora de romper-se sob o efeito de um impacto. A isso chama-se resiliência. O cálculo é realizado a partir da unidade de superfície de ruptura[2]. Portanto, este é um termo que, mesmo sendo muito utilizado pela Psicologia em nossos dias, foi originalmente criado para aferir o estado das coisas. Para os psicólogos atuais, a resiliência é capacidade de adaptar-se de forma mais ou menos rápida às novas situações, absorvendo e trabalhando a partir do impacto sofrido. Houve um tempo em que reagir assim era considerado patológico, mas, dada a complexidade dos contextos a que os seres humanos estão expostos, tornou-se um diferencial, uma qualidade. Interessante notar como humanos tornaram-se aos poucos semelhantes às coisas no transcorrer dos tempos. O leitor perspicaz saberá guardar bem esse termo: coisificação.
Linhas de montagem e processos mecanizados, aliás, oferecem a estrutura desse Mundo Novo. As linhas de montagem trazem a imagem do processo de produção fracionado, em que o operário (responsável apenas por uma das partes na esteira) desconhecia o quanto vinha antes dele e o quanto depois ainda haveria. Ele tanto poderia estar apertando um parafuso de um automóvel quanto de um tanque de guerra - ou de um torpedo. O que importava a ele era fazer a sua parte. Huxley captou bem o espírito pragmático do capitalismo mais selvagem: ao operário era negado o direito de autoria sobre o seu fazer; ele apenas cumpria ordens e mantinha-se limítrofe para a garantia do seu emprego. À época de sua publicação, esta era uma crítica clara ao advento do Fordismo. Mas, com o passar do tempo, movimentou-se para outros setores, oferecendo ao leitor a metáfora própria para cada década. O que torna essa distopia uma realidade cada vez menos hipotética.
E, mais que resilientes, Huxley concebeu um mundo onde operários, patrões e todos os habitantes eram felizes. A começar pelo nascimento: eram geneticamente separados em castas, de modo que um operário seria sempre um operário; patrão seria patrão. Ninguém ousaria querer ser mais ou pensaria ser menos. Cada um vivia, assim, bem feliz em seu quadrado. A propósito, a reprodução humana também se dava em escala industrial, mecanicamente: sem o aparato orgânico, sem sentimento, sem relação com o outro e sem família. Algo absolutamente desumanizado. E, quanto mais inferior fosse a função que desempenharia aquele ser para a manutenção da vida em sociedade, menos se investiria em sua matriz original: um ovo apenas poderia dividir-se até noventa vezes. Esse contingente seria suficiente para, por exemplo, suprir de clones a uma usina inteira, gerando uma significativa economia no setor de reprodução.
O leitor é convidado a ver embriões mantidos artificialmente em laboratório até atingirem a fase adulta. Estaria a narrativa antecipando-se à década vindoura, que trazia em seu bojo o Nazismo ou seria esta uma metáfora para os nossos dias? Leitores da realidade, envolvidos com o Biodireito/Bioética que o digam[3].
Não somente isso, os embriões eram monitorados e condicionados psicologicamente enquanto se desenvolviam: era-lhes ensinado como agir, como reagir, como sentir e como pensar. Interessante notar que o condicionamento psicológico iniciado na fase embrionária, continuava por toda a vida: durante o sono, os habitantes desse mundo novo eram conduzidos suavemente pela atraente propaganda hipnopédica – que nada mais é do que controle da mente, lavagem cerebral. Até mesmo no entretenimento: às imagens cinematográficas ou figuras sonoras, somavam-se sensações de prazer e dor, como uma miração[4] coletiva. Assim, definitivamente, assegurava-se a harmonia e a paz. E tudo era anunciado como um triunfo da Ciência.
Huxley magistralmente oferece um modelo de sociedade em que a Eugenia é plenamente aceita e a interdependência dos indivíduos é descartada: o Outro simplesmente desaparece e com ele, suas demandas. Há um esvaziamento de significado afetivo. O desejo erótico é suprido pelo utilitarismo promíscuo e frio; a paixão não existe. Amor, nem se fala. A essência do humano se dilui nessa modernidade onde apenas importa a manutenção do Estado. Assim como desaparece a dependência de um Criador [tão inconveniente, para alguns]. O resultado disso é a completa alienação. A narrativa cumpre seu papel de sedução: “É impossível não ver que este mundo é bom!”. Nas palavras do autor:

(…) o mundo é estável. O povo é feliz; todos têm o que desejam e nunca querem o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca ficam doentes; não têm medo da morte; vivem na perene ignorância da paixão e da velhice; não se afligem com pais e mães, não tem esposas, filhos, nem amantes a que se apeguem com emoções violentas. E se alguma coisa não estiver bem, há o soma.” (ADIMIRÁVEL MUNDO NOVO, 1932)[5]
Se a lavagem cerebral garantia a paz e harmonia, a ingestão diária do SOMA era a garantia de felicidade total. Esta substância sintética de rápida absorção pelo organismo humano deixava tudo colorido, suprido, elegante, equilibrado e bom. Aqui, outra crítica. Desta vez, ao mandamento “o que importa é ser feliz”. Na mesma esteira, segue a crítica ao pensamento pragmático d' “o fim justifica os meios” ou “foco no resultado”.
Mas, como não poderia deixar de ser, Huxley introduz um personagem que vai furar essa bolha de harmonia e paz. Ele é chamado de O Selvagem. Ao deparar-se com ele, o leitor passa a ter a revelação desse mundo: novo – e inescapável.
O tema é tão pertinente à atualidade que à obra de Huxley foi dedicado um painel no Fórum Social Temático (24-29 de janeiro de 2012, Porto Alegre). Os debates focalizavam a crise capitalista, a (in)justiça social e ambiental. E Huxley lá – vivo e inquiridor, com seu Admirável Mundo.
Cabe um paralelo. Hoje, o que serviu de pano de fundo para a construção daquele mundo de Huxley não é mais o saldo de uma Guerra Mundial e sim, uma nova crise financeira e moral. As exigências de um mercado que devora os direitos trabalhistas. Líderes e liderados que mantém aquecido esse mesmo mercado a qualquer custo para abastecer a contento sociedade – que ainda se mostra - de consumo. A resiliência é um diferencial, porém muitas vezes, é mantida à base de Fluoxetina. Mas o que importa mesmo é ser feliz, diz a propaganda. Escolas a serviço do sistema, formando sujeitos/sujeitados segundo determinismos e processos estreitos – e muitas vezes, obsoletos – onde é negado ao Professor a autoria pelo seu fazer e ao aluno, a crítica. Chegou-se à Era da Informação, mas o que isso significa mesmo?
O leitor surpreender-se-á ao chegar ao final do Admirável Mundo Novo. Deparar-se-á com a crua verdade de que não basta se ter uma visão privilegiada de mundo. Porque, afinal, o essencial é O Invisível aos olhos[6].






[1] - Mirna Cristiane Cases, Professora de Língua Portuguesa para Fundamental II e Literatura
[2]- Informação de domínio público via web: www.conceito.de

[3]- Maria Helena Diniz, jurista e professora brasileira (PUC-SP), em sua obra intitulada O Estado Atual do Biodireito (3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006), afirma: “A engenharia genética, ou tecnologia do DNA recombinante, é um conjunto de técnicas que possibilita a identificação, o isolamento e a multiplicação de genes dos mais variados organismos. É uma tecnologia utilizada em nível laboratorial, pela qual o cientista poderá modificar o genoma de uma célula viva para a produção de produtos químicos ou até mesmo de novos seres, ou seja, organismos geneticamente modificados.” Partindo desse pressuposto, outra autora brasileira também professora, Renata Rocha, Mestre em Filosofia do Direito, que atua na área da Bioética e Biodireito, escreve: “A engenharia genética se apresenta, então, como uma técnica que, associada ao procedimento de fertilização in vitro, torna possível a manipulação de células-tronco germinais humanas, compreendendo a totalidade das técnicas capazes de interferir, alterar ou modificar a carga hereditária da espécie humana, a saber, o diagnóstico genético pré-implantacional, a terapia gênica e a clonagem, entre outras.” (O Direito à Vida e a Pesquisa com Células -Tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 51) É importante ressaltar, no entanto, que, por conta de implicações decorrentes dessa manipulação, a legislação brasileira (Lei Nº 11.105/2005, art. 6º, II e II) limita a atividade do pesquisador, visando evitar a proliferação de seres humanos germinalmente modificados.
Para saber mais, consultar o trabalho de resenhistas, acadêmicos, no site www.scielo.br. Há, por exemplo, a resenha da acadêmica Débora Diniz sobre o livro intitulado O Útero Artificial, de Henri Atlan, publicado na França em 2005, traduzido para o Português e publicado pela Editora FIOCRUZ em 2006. O texto discorre sobre a Ectogênese – termo cunhado no início do século XX pelo geneticista Jonh Haldane (Inglaterra) – que faz referência ao conjunto de técnicas necessárias para produzir bebês fora do útero materno. Há, também, um artigo da Revista VEJA (3/NOV/1999) sob o título “Rumo à fronteira final”, revelando o avanço da técnica de Ectogênese em Tokyo, inclusive, comparando essa pesquisa aos embriões em laboratório do Mundo Novo de Huxley, cuja obra, à época, contava seus 67 anos.

[4]- Termo cunhado pelos adeptos ao ritual do Santo Daime.
[5] - HUXLEY apud CAPERUTO et al. Artigo intitulado ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA ENTRE A OBRA E A SOCIEDADE PÓS-MODERNA. Créditos e cumprimentos aos autores, estudantes da Faculdade Cásper Líbero, Núcleo de “Comunicação, Recepção e Identidade” sob a orientação do Professor Doutor Dimas Künsch.
[6] - Paráfrase de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupèry

domingo, 17 de julho de 2016

Desverso

De repente, era bom amar o que é Belo
desejar insaciavelmente o Belo
Era aquela Beleza, meu anelo

E foi bater os olhos e inflamar-me

Foi bater os olhos e prender-me

Caminhei alegremente ao patíbulo
Dizendo eu ao Belo: leva-me
Cativa estou do teu poder
Sem que o Belo sequer
precisasse mover-se do lugar
Eu ia, cegamente, ao seu encontro
Julgando da sedução não ser presa
e tão prestes a diluir-me num mais que macabro ritual
Logo eu: àquela altura da vida, a me aventurar
a enfeitiçar-me por um cavalo sinistro
Quando tudo o que se tem nas mãos
é uma superfície cálida:
lisa pelagem,
músculos desenhados à perfeição,
a cor de véu nos olhos,
um puro-sangue moderno,
um Belo e robusto exemplar,
tinha o acúmulo de palavras articuladas,
uma vaga impressão de sabedoria
e uma Aura que elevava tudo que era dele
à décima quinta potência
Entregar-me a isso parecia correto
pois era o Belo que eu perseguia
Do Belo eu me alimentara
Assim eu me suprira
Só o Belo me bastara
Até que, num lapso, rachou a casca
Então, como pedra clivada
partiu-se e revelou o conteúdo 
E eis um bicho por dentro
Que por mil tentáculos me dominava
Era monstro comedor de gente
Com boca que não só devorava,
mas, também, maldizia
Uma boca que não só acusava
mas, também, confundia
Definho eu ou seria impressão, eu me perguntava
E desaparecia por entre as dobras do tempo
Horas, dias, anos, enquanto me iludia
Eu dava tudo de mim, então, nele, me diluia
Tudo pelo Belo que já não era
E, que talvez, nunca fora
Mais que uma invenção minha
para incendiar as estacas da minha tenda
arrasar a terra atrás de mim
Abortar minha maternidade
que no lugar do ninho cresceu um vazio
Eu mesma a interditar meu Universo
passando a habitar lugares sombrios
Pelo Belo abdiquei da Eternidade
Fiquei qual Joaquim: pelo amor comido
Fui eu mesma a comer minha identidade
e todos os papéis onde escrevera meu nome
Fui eu mesma a comer meus livros de poesia
e também essas palavras lúgubres
que nunca se juntarão em verso.



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

MINOTAURO


Eram dois dias do mês de agosto
Dez dias depois deu no jornal:
“Jovem que teve as mãos decepadas perdoa seu agressor”
Agressor é eufemismo: mídia, que desgosto!
A palavra certa é Psicopata:
mais da metade dele, na verdade,  é criatura incerta
Mas ela diz que acreditava no Amor,
que o Amor mudaria o coração do amado
- do Psicopata amado por ela
Mas não mudou: logo se vê
E até já se via: porque vez e outra, o pau comia
Vizinhança bem sabia
A moça revidava, mas nem doía.
Era só a carcaça, aquele couro vazio, que riscava.
Coração, que é bom, 
esse não funcionava.
Não funcionava, não.
Veio, então, lá de dentro
 ele com um facão
Primeiro abriu a cabeça dela,
Depois lhe torou pés e mãos.
E, julgando que estava morta aquela
que tantas vezes insistira em Amor
foi ele agarrar-se à mãe como guri desmamado
Nisso quem sabe alguém teria perguntado,
como é próprio da gente comum, 
culpabilizar adivinha quem...:
 “O que teria feito ela de ruim
para que ele perdesse a cabeça assim?”
[Como se Psicopata precisasse de pretexto]
E enquanto a sociedade se debruçava
e debatia-se no extenso labirinto
midiatizado das emoções insanas
Outros tantos jovens devorados
eram no maldito matadouro

M Cristiane Cases, 19/08/2015
Reação imediata da autora à notícia divulgada pelo jornal: 

"Jovem de 22 anos teve mãos e pés decepados após briga com homem.
Caso ocorreu no dia 2 de agosto, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul."

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Maria Aparecida Roxo Rodrigues escreveu: Outras em mim




E se pelo avesso
eu fosse outra?

Correndo pela terra seca
levantava poeira
brincava com os pequenos
e me comprazia com as risadas.
Pintava as paredes de barro
e morava dentro de mim.
E se pelo avesso
eu fosse outra?
Caminhava devagar pela mata
colhia ervas
macerava
preparava tinturas
e dançava sem estar em mim.
Outras dançavam no meu corpo.
E se pelo avesso
eu fosse outra?
Então,
pelas frestas do tempo,
nas dobraduras do ir e vir,
o caminhar das outras
vem pulsando em mim.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Agradecimentos

Moenda Cultural agradece a contribuição de Leitores e Escritores na construção deste espaço.
No momento, temos 3 poetas publicando neste Blog!
Envie para moendacultural@gmail.com a sua contribuição. Será um prazer publicar!
A Arte nos espera. Vamos a ela!
Até breve!
moenda

domingo, 21 de setembro de 2014

Crítica de Cinema


O filme não reflete um drama entre nacionalidades distintas: ele iraniano, ela francesa. É baseado na linguagem privada do casal, quando esta se perde. São 3 casais envolvidos. Um deles, dissolveu-se pela separação de fato e encaminha-se para a oficialização do divórcio. É notável a construção da trama porque aponta para o fato de que, ao se perder a capacidade de comunicação com o outro (impulso mais primitivo do ser humano), a indiferença se instala. Iniciando, assim um perigoso quadro depressivo. É também um reflexo do novo arranjo familiar: os meus/os seus/os nossos, em termos de relação parental. Mostra o poder curativo do diálogo nos relacionamentos. Filme que traduz um olhar extremamente sensível pelo roteiro e pelo argumento. Muitas vezes, o que se condiciona chamar de PASSADO pode não caber nessa expressão pelo fato de ainda fazer parte do PRESENTE. Por: Cris Cases

terça-feira, 8 de julho de 2014

Cris Cases escreveu:

O Príncipe e a Rosa

Era uma vez um príncipe, um pequeno príncipe, viajante de um planeta muito distante (na verdade, era um asteroide) chamado B-666, digo B612. Ele havia caído em um deserto deste planeta Terra – que era bem maior que o seu asteroide, mas era feito praticamente do mesmo material. Mal chegando aqui, já queria retornar às suas origens, pois passou a consumir-lhe a preocupação com a rosa que amava e que havia abandonado à própria sorte.
Sua rosa havia aparecido sem que ele soubesse exatamente de onde viera e passou a empurrar para um canto a rotina milenar daquele solitário e muito disciplinado principezinho porque ela reivindicava para si muitos cuidados – essas coisas de flor: alimento e proteção. Antes dela tudo estava em perfeita ordem: ele fazia a manutenção de três vulcões (um deles declaradamente extinto) e de todos os baobás porque o terreno era muito árido por ali e, até então, havia uma troca justa. Os baobás lhe davam sombra fresca e água,  e os vulcões ativos eram úteis na hora de preparar almoço – sim, porque esse principezinho era um excelente gourmet. Mas a rosa... Ah: a rosa passou a atormentá-lo com suas fragilidades – essas coisas típicas de flor: medo do frio e da dor. Ela não suportava o frio, nem a invasão das lagartas, embora estas se envolvessem nos respectivos casulos durante o inverno – mas a ideia de ser lentamente devorada por elas deixava-lhe apavorada por completo; e por isso suplicava ao príncipe que as removesse rapidamente. E, se ele alguma vez se descuidava desses afazeres diários, ela simulava uma tosse crônica, quase que sufocava. Então, ele mais que depressa, a protegia. De repente, olhava mais uma vez para a rosa e ela estava lá, com aquela mania de flor: declamando as poesias que escrevia para seu príncipe e cantando alegremente para ele, feliz. Ainda há pouco, estava tão adoecida, agora está aí a cantar enquanto eu fico aqui a trabalhar e trabalhar! Não admira que seu perfume e sua beleza sejam conhecidos de todo o planeta – digo: asteroide: ela praticamente vive num pedestal, tudo isso ele pensou num milésimo de segundo! E pensou mais: meus vulcões e meus baobás me dão retorno certo, mas e ela – o que essa rosa tem para me oferecer, afinal?
Foi aí que ele passou a duvidar de que se beneficiaria de fato com a presença da rosa. Assim, passou a arquitetar todo tipo de dúvida. Logo não olhava mais para ela com tamanha admiração e paixão como da primeira vez e sim, com sombra de dúvidas. Depois de um tempo, já sentia o peso daquela sequência de reivindicações e passou a emanar de si uma tristeza tão profunda que a rosa até ficou com medo de adoecer de verdade e acabar dando mais trabalho para o principezinho. E, como só tinha seu perfume e sua beleza para oferecer ao seu dono, isso nada significaria, se ele estivesse cansado dela e almejasse coisas mais significativas.
Um belo dia, digo: era um dia triste esse, uma fria manhã de outono, ele disse “não quero mais viver contigo”, “e, porque vieste te instalar logo aqui no meu asteroide, agora sou eu que tenho de ir-me embora se quiser ver-me livre de ti”. E, com ar de cansado, preparou-se para partir. Na verdade, quando ela olhou novamente para ele, achou que o principezinho havia envelhecido duzentos anos e pensou, “isso tem um lado bom, porque nessa idade, as pessoas demoram mais para transformar grandes decisões em ação”. Mas, ele tinha ficado velho só por fora, porque, por dentro ainda era um menino. Aquele pequeno príncipe era só um menino atormentado com a ideia de ser eternamente responsável por aquela rosa que se deixara cativar por ele. Então, ele revirou pela última vez seus vulcões, e podou pela última vez seus baobás, e arrumou a sua mala. Mesmo sob os protestos da rosa – essas coisas de flor: medo da rejeição e da solidão. E ela, que não suportava vê-lo determinado a seguir seu intento de partir, num gesto corajoso e de plena abnegação, lançou de sobre si a redoma que era de vidro e se quebrou, ali ela estivera protegida do frio e das larvas até então e logo precisou curvar-se sobre as próprias folhas e espinhos porque ventava tanto a ponto de arrancar-lhe algumas das suas pétalas mais vistosas, assim, toda sua cabeleira de pétalas vermelhas por fim, acabou roçando o solo árido do planeta – digo: asteroide. Nisso, uma lagarta que passava por ali, achou por bem refugiar-se naquela vasta peteleira (que é cabeleira em forma de pétala)... Arrancando da rosa um suspiro e quase um sorriso inteiro, não fosse pela circunstância desmoronática na qual se encontravam ela e o príncipe... Por fim, o tal sorriso ficou inacabado mesmo (mas foi como dizer: bem-vinda, dona lagarta - porque ela havia feito uma pesquisa e descoberto no blog de um jovem biólogo que todas as lagartas viram borboletas, então, permitiu que a colorida lagarta a visitasse sempre que quisesse). “terei que suportar uma ou duas larvas se eu quiser conhecer as borboletas”, disse ela, firmando-se bem na sua haste. Ela havia descoberto que, afinal, não era assim tão frágil quanto pensava. Havia aprendido muito da vida com seus estudos, ali, na sua redoma de vidro. Era uma rosa forte agora. Todos aqueles cuidados diários de quem a amara até então haviam feito com que ela sobrevivesse a todas as intempéries e ela, estendendo as folhas maiores, esticou-se o quanto pôde em sua haste para tocar o príncipe, seu pequeno príncipe, enquanto dizia num sussurro de reconhecimento e gratidão porque ele a havia acolhido: eu te amo. Mas ele se afastou sem nada dizer e virou-lhe as costas. Ela não sabia mais o que dizer, porque há outras linguagens, outras maneiras de dizer sem falar, mas ela tentou assegurar-se de que ele a ouviria desta vez: apenas disse “adeus”, mas não chorou. Estava aprendendo uma nova e poderosa lição chamada resiliência.
Ele, por sua vez, partiu - e retornou ao planeta, digo: asteroide, mais um milhão de vezes. Porque, somente ao certificar-se de que estava irremediavelmente distante da sua rosa é que ele percebia o quanto a amava. E, isso foi interessante porque, na primeira vez que ele partira, acabou descobrindo, ao voltar, que aquela lagarta era uma taturana e havia deixado sua rosa bastante ferida... Então, ele sentia tanta pena dela porque agora seu corpo estava tão deformado pela ação daquela lagarta feroz que fez um esforço para não perceber que, dali em diante sempre que a rosa cantava, saia junto com a voz dela um gemido bem fininho de dor. E também fez vista grossa quando, ao voltar de muito mais longe outra vez, percebera que os espinhos da sua rosa haviam se multiplicado e estavam mais robustos do que nunca. Mas ficou feliz em saber que a rosa aprendera a usar seus espinhos para se defender das taturanas. Ela disse: “Tudo na vida tem um lado bom, só precisamos aprender a enxergar...Além do mais, só se vê bem com o coração, porque o essencial é invisível aos olhos”.
Até que numa dessas idas e vindas, o principezinho chegou a um planeta muito, muito mais distante chamado Terra e encontrou um aviador no meio do deserto. E, como ainda estava com muita raiva da rosa (talvez pelos espinhos multiplicados, ou pelas canções repetitivas, ou pelas lições de moral daquele interminável jogo do contente “tudo-tem-um-lado-bom-blá-blá-blá” ou só porque sim), pediu para o aviador que lhe desenhasse um carneiro numa pequena folha de papel. Ele pretendia levar o carneiro para o seu planeta, digo: asteroide. Certamente, um carneiro me será muito útil nos invernos rigorosos, pensava o pequeno príncipe. “Por favor, desenha-me um carneiro”, disse o principezinho com aquela doce voz de guri. Com muito custo, ele obteve o tal carneiro, pois, como desenhista, o homem era mesmo um excelente aviador. Dias depois, descobriu que o seu lindo carneiro havia devorado a rosa com todas as suas crisálidas de estimação – porque o aviador esquecera-se de desenhar também uma mordaça para o carneiro - ou desenhara tão mal que mais parecia outra coisa e o carneiro devorara o tal objeto sem a menor cerimônia. Então, não suportando tamanha dor, o principezinho se matou. Digo: contratou os serviços de uma experiente serpente para matá-lo e ela foi muito eficiente mesmo.
Haviam dito para ele que quando se morre, a gente vira uma estrela. E, mesmo ele tendo perguntado se estrelas sentem frio, ou têm perfume, ninguém soube responder. Porque quando a gente é menor e não sabe das coisas, pergunta para os maiores. Depois que a gente cresce cada um tem que ir atrás de suas próprias respostas, estudar com dedicação, pesquisar. Mas, pelo que se diz por aí, àquela altura, a rosa já tinha virado estrela de brilho raro. Então, o principezinho virou também, outra, mas era mais parecido com o Sol, porque ele era de muita grandeza. Alguém chegou a afirmar ter ouvido umas risadas no meio do céu. Vai ver que no final, eles foram felizes para sempre!